A verdade por trás do erro: Filme Elizabeth [1998]

Dirigido por Shekhar Kapur, Elizabeth, filme de 1998, é considerado pela crítica especializada como o maior épico já feito sobre a vida da monarca, que governou a Inglaterra entre 1558 e 1603. Vencedor do Globo de Ouro de melhor atriz para Cate Blanchett e indicado a outras seis categorias do Oscar, o longa aborda os primeiros anos do reinado da filha de Henrique VIII com Ana Bolena e sua luta para permanecer no trono inglês. É uma excelente produção, pois cria asas à imaginação do público sobre o possível relacionamento entre a jovem Elizabeth e Lorde Robert Dudley, além de estabelecer um parâmetro entre as ameaças de invasão impostas pela Espanha e França e as tramóias de Thomas Howard, IV Duque de Norfolk, para usurpar a coroa e assassinar sua prima. Entretanto, como de costume em diversos filmes que abordam temas históricos, Elizabeth não escapa à recíproca e transparece ao grande público alguns erros que merecem ser levados em consideração.

O primeiro deles consiste na cronológica sucessão ao título de Duque de Norfolk pelos membros da família Howard: na cena em que a Rainha Maria I convoca uma sessão particular em sua câmara para saber notícias acerca da rebelião contra sua autoridade, ela transparece seus agradecimentos a um jovem pelo qual ela chamou de Norfolk. Porém, a figura do Duque ali presente deveria ser a de um homem com cerca de 80 anos de idade, haja vista que foi o tio de Ana Bolena quem liderou o combate. O jovem presente no quarto possivelmente era o neto de Thomas, que ascendeu ao título pouco depois da morte de seu avô (sim, avô e neto compartilhavam o mesmo nome). Foi o III Duque de Norfolk e não o seu neto, quem providenciou a prisão de Elizabeth, sob acusação de que ela estaria aliada com Thomas Wyatt no processo de rebelião contra a Rainha.

Mais adiante, o espectador tem um vislumbre da romântica vida de Elizabeth em Hatfield até deparar-se com a figura de uma jovem aia correndo pelos campos para alertar à sua senhora de que esta fora acusada de ser a instigadora da guerra civil e que naquele instante uma comitiva, sob liderança do Conde Sussex, estava a caminho com uma ordem de prisão. A mulher em questão se trata de Catherine Champernowne, mais conhecida pelo seu nome de casada, Kat Ashley, interpretada no filme por Emily Mortimer. Kat cuidou da Princesa Elizabeth desde 1537 e tornar-se-ia uma de suas melhores amigas até 1565, ano de sua morte. Porém, a “Kat” do filme Elizabeth apresenta-se muito mais jovem do que deveria ser, como se fosse da mesma idade que sua senhora, desconsiderando o fato de que a verdadeira Catherine Champernowne era no mínimo 20 anos mais velha que Elizabeth.

No desenrolar da trama, uma sucessão de acontecimentos e personagens ganha vida, como a alegórica coroação de Elizabeth, feita de forma a referenciar o famoso quadro em que a nova Rainha traja um vestido amarelo ouro e ostenta em sua cabeça a coroa de Santo Eduardo e em suas mãos os dois cetros da soberana. Foi simplesmente perfeita, era como se a Elizabeth da pintura saltasse para o filme e mostrasse ao público toda a força de sua majestade. Mais em seguida um novo equívoco ganha destaque: o embaixador francês notifica a Elizabeth a proposta de matrimônio do Duque D’Anjou, quando na verdade o primeiro pretendente da Rainha fora o Arquiduque Carlos da Áustria. A Proposta de casamento com o Duque francês só veio a calhar quando as relações da Inglaterra com a casa de Habsburgo se deterioraram em 1568 e o filme Elizabeth compreende apenas cinco anos do reinado da mesma.

Ainda no que se refere a datas, outro aspecto confunde a cabeça do telespectador: o filme se passa em 1554, como é mostrado no começo da trama, mas a coroação de Elizabeth só ocorreu em janeiro de 1559. Isso mostra como as cenas avançam de forma rápida, com pouco ou quase nenhum esclarecimento sobre a cronologia subsequente. A cena que se segue à festa dada em homenagem à nova Rainha, mostrando uma relação sexual entre Elizabeth e seu amigo de Infância Robert Dudley é outro embaraço, pois não há como ter absoluta certeza de que os dois mantinham essa intimidade, apesar do falatório real que confirmava esse ponto de vista. Não é impossível que os dois tenham trocado alguns beijos e carícias, mais até aí nunca se poderá saber se houve de fato a cópula carnal. O mais provável é que ambos mantinham uma relação de amor cortês, bastante comum àquele período.

No tocante ao atrito entre Elizabeth e Marie de Guise, o filme acentua que a mãe de Mary Stuart só iria cessar a investida francesa contra a Inglaterra se a Rainha aceitasse o cortejo de seu sobrinho, o Duque D’Anjou. Isso por si só já é uma grande invenção, pois Marie morreu em 1560. Elizabeth e Henry D’Anjou só se conheceram apenas em 1568 (Elizabeth ainda desposaria o irmão do duque, Francisco D’ Anjou, em 1572). Também não há como provar de que estava envolvida no provável assassinato da viúva de Jaime V, como o filme induz a acreditar. Nesse processo Francis Walsinghan, que havia voltado da França quando da coroação de Elizabeth, ganhara destaque, mas sua participação nesse caso não condiz com os registros históricos. Ele fora nomeado por Lorde Willian Cecil para integrar a Câmara dos Comuns, representando a cidade de Banbury e com o passar dos anos, se tornou o principal conselheiro de Elizabeth.

Sobre Willian Cecil, consagrado I Barão de Burghley, não é verossímil o fato de que a Rainha o afastou do conselho para tomar suas próprias decisões políticas. Muito pelo contrário. Até a Morte de Burghley, em 1598, ele havia sido nomeado duas vezes Secretário de Estado e Tesoureiro em 1572. Também é infundada a tese de que Willian teria informado a Elizabeth do casamento de Robert com Amy Dudley. Ora, vejam só que grandiosa invenção. Elizabeth sempre soube que Robert era casado e conviveu com isso desde então. O início das hostilidades entre os dois deveu-se à suspeita de que Lorde Robert teria assassinado sua mulher para ficar com Elizabeth. Até hoje isso é um grande mistério para os historiadores.

Além desses, outros erros se tornam enfadonhos: a conspiração de Robert com o Embaixador espanhol para influenciar a Rainha a se casar com Felipe II, rei da Espanha; O corte Chanel, que foi inventado pela estilista no século XX, usado por uma das damas da Rainha; Elizabeth ter se consagrado virgem após cortar os cabelos e decidir que não mais se casaria. São esses erros que tornam o filme Elizabeth responsável por divulgar uma história fictícia acerca desta, que foi a monarca mais bem articulada da Inglaterra. Por outro lado, ele confere com a falta de experiência de Elizabeth para governar nos seus primeiros anos de gestão até resolver seus problemas e conscientizar-se de que era uma soberana. Apesar destes equívocos, o longa-metragem é recomendável a todos aqueles que se interessam pela dinastia Tudor, pois faz um fiel retrato do vestuário, modos e costumes da corte elizabetana, bem como de sua líder.

Artigo escrito por Renato Drummond.   

Veja mais algumas fotos do filme:



 


15 comentários sobre “A verdade por trás do erro: Filme Elizabeth [1998]

  1. O artigo é legal em ressaltar a falta de verossimilhança de algumas partes da trama com a história real.
    Mas isso é um filme, ficção, não há como englobar 5 anos de reinado em 2 horas de filme sem cortar, recortar e moldar; fora que o diretor é um “criador”, ele tem a liberdade de transformar história para que “agrade mais” ao público, como por exemplo, incluir romances ou intrigas que não existiram, pois esta é uma atividade comercial. Ele possui licença poética para tudo isso, e lembrando, isso é um filme, não um documentário.
    Só acho que o autor poderia ter feito sua conclusão um pouco melhor, pois ele afirma: “No mais, o longa-metragem é recomendável a todos aquele que se interessam pela dinastia Tudor, pois faz um fiel retrato da corte elizabetana, bem como de sua líder.”
    Ou seja, durante todo o artigo ressalta a falta de verossimilhança, e no fim, se contradiz ao dizer que o filme faz um fiel retrato “de sua líder”.

    • Obrigado pela sua crítica, Germana.
      Pois bem, realmente se trata de um filme, que tenta compreender cinco anos do reinado de Elizabeth e é lógico que muita coisa precisa ser cortada. Entretanto, não podemos deixar de considerar o fato de que o filme é uma das portas de entrada para o interesse de alguém sobre determinado assunto e por essa razão, a grande parcela público julga o filme como real, como se tudo aquilo tivesse acontecido, o que resulta no julgamento leviano da figura de Elizabeth. Falo isso por experiência midiática e pessoal.
      Quando faço a recomendação do filme a todos aqueles que se interessam pela corte elizabetana e a dinastia Tudor, me refiro à figura de Elizabeth, bem como os modos e os costumes de seu tempo e não sobre os acontecimentos.

  2. Concordo com você aí: o filmes (ou livros etc) é a porta de entrada para o interesse de alguém sobre determinado assunto, também falo por experiência própria, li sobre Ana Bolena num livro de história do ensino médio, o livro retratava ela como ligada à feitiçaria e ressaltava a infame história do sexto dedo como prova. Já pensou que absurdo!? Mas foi justamente daí que fiquei curiosa e desde então pesquiso sobre ela e a disnatia Tudor.
    Portanto acho que mesmo sem ser verossimilhante o filme cumpriu seu papel: atiçar a curiosidade das pessoas, a partir daí elas vão embarcar num mundo maravilhoso, e vão por si sós descobrir muitas coisas. Quem sabe se o filme não relatásse uma história de amor entre ela e Dudley, por exemplo, o público o acharia enfadonho e não se instigaria a saber mais; é mais interessante (pra quem não tem base alguma) uma “rainha virgem” mas que amou demais um homem e por vários motivos políticos e ideologicos não se casou com ele do que apenas uma “rainha virgem”.
    O filme tem que “vender” uma história e, às vezes, a realidade não parece tão atraente ao primeiro olhar, por isso se molda…
    Mas de qualquer modo, gostei muito de seu artigo, e também do primeiro lá do blog de história.
    Tudo que se venha a escrever para enriquecer a história da dinastia tudo só tem a receber elogios e críticas construtivas, aumentar a fortuna crítica é aumentar o conhecimento sobre esses personagens fascinantes.
    Grande abraço!

    • Fico muito lisonjeado com sua avaliação positiva acerca de meus artigos, é bom ver que eles estão sendo lidos.
      Mas eu penso da seguinte forma: um diretor pode cortar, recortar e moldar o roteiro para que ele fique mais agradável aos olhos do grande público, mas no momento que ele conta mentiras isso deixa de ser viável, pois nem todos têm a mente aguçada a ponto de pesquisar se aquilo realmente aconteceu. O diretor pode ter toda a liberdade de manipulação do enredo, mas em de tratando de filmes com temas históricos, isso se torna mais complicado, uma vez que o espectador idealiza que a encenação do filme condiz com o passado e, diante disso, fica acomodado.
      Quando assisti Elizabeth, por exemplo, eu ja conhecia a história dela e fiquei impressionando com os equívocos do filme. O pior de tudo foi ver as pessoas que estavam assistindo o filme ao meu lado, discutirem comigo que eu não tinha autoridade nenhuma pra falar e que o diretor não ia por algo que não tivesse acontecido. Me senti indignado, pois já li vários livros sobre Elizabeth e a Dinastia Tudor, então me propus a escrever este artigo, para esclarecer a mente daqueles que so por que assistiram um filme, acham que podem julgar a história factível!

  3. Ha… antes que eu esqueça, um grande abraço para você também, minha querida! Seguiremos juntos na busca por uma melhor compreensão desses ícones do século XVI, que fazem ferver o imaginário popular. Beijos !

  4. “O pior de tudo foi ver as pessoas que estavam assistindo o filme ao meu lado, discutirem comigo que eu não tinha autoridade nenhuma pra falar e que o diretor não ia por algo que não tivesse acontecido.”

    Que absurdo! Isso deve dar muita agonia; você saber que o fato é distorcido e as pessoas não darem credibilidade,
    que coisa chata! =/

  5. Outro abraço pra você!
    E parabéns pela iniciativa juntamente com a dona deste site! =D
    Estou acompanhando sempre tanto você quanto ela!
    =***

  6. Ola Renato e Germana, a troca de bate-papo entre vcs enriqueceu meu ponto de vista sobre o filme. Eu tbm sou fascinada pela historia da Inglaterra e seus monarcas. Iniciativas como a sua Renato sao louvaveis e sim podem contribuir para elucidar fatos “fakes” da “estoria” aqui discutida. Foi bom encontra-los por aqui

  7. Outro erro do filme é a morte de Mary Stuart, nada a ver com a história. No filme ela é assassinada ainda na Escócia e na realidade ela foi executada na Inglaterra, após ter sido destronada pelo filho e ser obrigada a fugir.

  8. É tão óbvio o que vou dizer que me sinto constrangido. O filme é uma ficção baseada em fatos históricos e não um documentário! Portanto não faz o menor sentido o uso do termo ”erros”.

    • A resposta é tão óbvia que eu me sinto constrangida: se o filme se diz baseado em fatos reais e de fato quer retratar o reinado e a personalidade de uma Rainha que existiu e cujos atos e falas foram extensivamente registrados por diversos embaixadores e cortesãos, não há porque inventar fatos totalmente contraditórios a História. Uma coisa é resumir atos de diversos personagens em um só (como The Tudors fez), outra coisa é inventar coisas de forma completamente aleatória e até mesmo xenofóbica, como o que fizeram com o pobre Duque de Anjou. Não é à toa que foi vaiado na França.

  9. Maravilha encontrar um comentário tão sério é fundamentado. Acho complicado para o roteirista ficar inserindo informações mesmo com bom tratamento textual para ser anexado ao filme. De qualquer modo vale apontar, para que não ocorram erros tão grosseiros quanto, que deixam o espectador perdido.
    Agradeço e deixo um abraço.

  10. É assim com filmes que “agradam” ao público que se distorce a história muitas vezes irremediavelmente

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