meu amigo arcebispo Cranmer veio visitar-me. Por um instante pensei que viesse trazer-me o perdão do rei – talvez o meu desterro para um convento distante. Mas o único alívio trazido por Cranmer é a morte indolor. Não serei queimada, pois o rei assim o dispôs. Pobre Cranmer… magro como uma espada, o nariz afilado e os olhos apagados pelo sofrimento. Cheirava a incenso como se tivesse estado a rezar longas horas na capela cheia de fumo. Porém a sua voz era forte e firme quando me saudou, conseguindo mesmo esboçar um sorriso. Porém, tinha pouco tempo e passou a informar-me da missão de que o secretário Cromwell o encarregara.
– O rei e Cromwell estão informados das minhas disposições
– disse. – Escrevi a Sua Majestade após a vossa prisão, dizendo nunca ter tido melhor opinião de outra mulher e que logo a seguir ao rei éreis a criatura por quem mais estima sinto.
– Haveis escrito isso ao rei?
– Claro que sim. Trata-se da verdade.
– Haveis sido muito corajoso, Thomas.
– O rei está decidido a contrair novo casamento, Ana – disse, aclarando a garganta. – Não quer que haja qualquer impedimento. Além do mais exige que Elizabeth… seja considerada bastarda.
Estremeci ao ouvir tão terríveis palavras. Tudo o que fizera em prol de minha filha, tinha sido em vão.
– Não lhe basta a minha morte?
– Uns dias antes do vosso julgamento, tentou obrigar pela força Henry Percy a assinar um documento afirmando o pré-contrato de matrimónio que ambos havíeis feito. Percy estava muito fraco e doente, mas recusou. Agora o rei exige que sejais vós a fornecer-lhe prova de que o casamento com ele é nulo e inválido.
– Quer que eu lhe forneça a prova?
– Sim. Podeis contradizer lorde Northumberland e afirmar que ele fez convosco o pré-contrato, ou podeis informar o rei do seu próprio caso com vossa irmã, o que o colocará num grau de afinidade demasiado próximo para vos poder desposar.
– Então o rei deseja ser informado por mim de que fornicou com Maria…
– Não me peçais que vos explique as estranhas ideias de Henrique. Sabeis que é impossível.
Porém o meu espírito animara-se já com novas possibilidades.
– Se nunca fomos casados, Cranmer, então nunca fui rainha, não será assim?
– Sim.
– E o adultério, noutra que não a rainha, não poderá ser considerado traição.
– Vejo os caminhos do vosso raciocínio, senhora – disse hesitando na escolha das palavras. – Mas, infelizmente, não é desejo do rei manter-vos viva. Apenas deseja que Elizabeth seja considerada ilegítima.
– Dizei-me. Este plano terá sido delineado por Cromwell?
– Exatamente. Segui-lhe a pista até aos encontros com o embaixador Chapuys, destinados a conseguir uma aliança imperial. Lembrais-vos de que quando as negociações falharam, Cromwell recolheu ao leito durante cinco dias, alegando uma indisposição? Julgo que deve ter ficado deitado a preparar este esquema, e agora emergiu do casulo qual borboleta malévola abrindo as suas asas sobre a presa. A presa sois vós, senhora. Reuniu os vosso inimigos, todos eles espiões dentro de vossa casa, para testemunharem contra vós. Mandou chamar Mark Smeaton à sua residência de Throgsneck Street, com o pretexto de que o pobre rapaz tocasse para ele. Obteve a sua confissão sob tortura.
– Já imaginava. Mas porquê? Porque o fez Cromwell? Não foi ele que torceu e retorceu a lei inglesa e o raciocínio humano, para tornar possível o meu casamento com Henrique?
– Haveis esquecido de que é uma borboleta que segue para onde o vento sopra?
– Sim, e há apenas um vento em Inglaterra – disse eu, com amargura. – Chama-se Henrique.
– Recordai que Cromwell chegou a falar com todo o fervor em prol da aliança imperial mas, quando o rei se mostrou contra, o secretário apercebeu-se que tinha escolhido mal. Para agradar a Henrique, havia apenas uma coisa que lhe poderia oferecer: um novo casamento com Jane Seymour. Um casamento sem impedimentos.
– Mas será que Henrique deseja seriamente ver-me morta? Chegou a amar-me muito, Cranmer. Do fundo do coração. Bem sabeis o que fez para que eu fosse sua.
– E vós senhora, bem sabeis que com um homem como Henrique o pêndulo da paixão balança de um lado para o outro. Receio…- fez uma pausa, pois as palavras eram demasiado difíceis para as pronunciar. – Receio que se não lhe deres o que deseja, as coisas não correrão bem para Elizabeth.
Senti o sangue gelar-me nas veias e estremeci.
– Também a matará?
– O rei Henrique é capaz de grandes crueldades e, se lhe convier, o assassínio da própria filha não será inconcebível. Ele ou o seu incubo Cromwell arranjarão um pretexto, tal como fizeram convosco. Sois uma bruxa, de modo que vossa filha também o é. Ou talvez que, sendo bastarda, as suas perspectivas de casamento sejam poucas e a menina se converta numa peça desnecessária, até mesmo incómoda. Tudo é possível, pois o rei está louco.
– O que dizeis é traição, arcebispo.
– Se a verdade é traição, então a vossa acusação é justa.
– Eu fui condenada por uma mentira.
– Todos o sabemos, senhora.
Não sendo capaz de me fitar, por vergonha, olhou pela janela para Tower Green. Porém, quando os seus olhos se fixaram no exterior e o vi apertar os dentes, aproximei-me para saber para onde olhava tão interessado. Vários pares de trabalhadores traziam tábuas de madeira para o centro da relva e empilhavam-nas ao lado do cadafalso onde morrera Thomas More.
– Perguntais se o rei já não sente amor por vós. Julgo que alguma centelha terá restado nesse archote que ardeu com tanta violência. Mandou vir de Calais o melhor carrasco do continente, para a vossa execução… para que seja levada a cabo com toda a facilidade.
Ao ouvir tais palavras senti-me inundada por uma onda de medo, porém logo a seguir acalmei-me e consegui dar mostras de alguma ironia:
– Ah, já tinha ouvido dizer que os carrascos de Calais são muito bons. E o meu pescoço é fino. Deve ser uma ocasião muito elegante.
– Oh, Majestade! – Cranmer caiu de joelhos diante de mim, tomou-me as mãos nas suas e beijou-as, chorando amargamente. – Então, meu amigo, não choreis por mim. Penso que este fim que agora tão injusto e cruel nos parece, faz parte dos planos divinos que não podemos entender, mas que são certamente perfeitos.
Disse-o para lhe apaziguar o espírito, pois não era exactamente o que sentia no coração. Algum tempo depois, limpou as lágrimas e ajudei-o a erguer-se.
– Sinto-me envergonhado que sejais vós a consolar-me, quando seria meu dever trazer-vos conforto.- Não importa. Trazei-me uma pena e pergaminho e escreverei o documento que Henrique deseja.
Quando Cranmer me entregou estes objetos, sentei-me e escrevi uma confissão, afirmando que, de fato, houvera um pré-contrato entre mim e Henry Percy e que, entre mim e o rei, havia um parentesco por afinidade, devido à anterior relação deste com minha irmã. Também acrescentei que o tinha enfeitiçado e que não o considerava ligado a mim por esses falsos laços de matrimônio. Garanti-lhe que nossa filha era ilegítima e assinei por fim “Ana, marquesa de Pembroke”. Enquanto secava a tinta, com todo o cuidado, para que não pudesse haver qualquer dúvida ou erro nas minhas declarações, perguntei a Cranmer o que seria dele.
– Suponho estar a salvo. Certos membros do Conselho Privado chamaram-me para me advertir de que o meu dever era admitir aparentemente a vossa culpa. Lorde Sussex tratou de me recordar da nossa antiga profecia: ”Serão queimados dois ou três bispos e uma rainha.”
– Como se fosse preciso recordar-vos que podereis cair comigo. Cranmer fechou os olhos e deitou a cabeça para trás, com os lábios apertados numa expressão de tristeza.
– Abandonei-vos, Majestade. Mas, por favor, crede que não foi por covardia. Estavas já perdida e o meu apoio nesse momento de nada valeria. Devo sobreviver para continuar a obra da Nova Igreja.
– Bem sei, Cranmer, haveis agido bem. Vou rezar até ao meu último suspiro para que a Igreja de Inglaterra não mais volte a cair sob o jugo de Roma – olhou-me com um ar indescritivelmente triste. – Alguma vez voltareis a ver vossa esposa holandesa? – perguntei.
– Julgo que não. Esse casamento foi um ato irrefletido.
– Mas Cranmer, haveis casado por amor. É muito raro, mas nunca irrefletido. Talvez quando Henrique se cansar dos vossos serviços possais viajar de novo até à Holanda para a voltar a ver. – Ele soltou uma pequena gargalhada e a seguir sorriu.
– Sim. Talvez. Obrigado, Majestade, por pensardes em mim num momento tão difícil para vós. Juro que não conheço ninguém tão bondoso.
A seguir o bom padre escutou-me pela última vez em confissão e deu-me uma suave penitência pelos meus pecados. Era tempo de se retirar. Enrolou o maldito documento, meteu-o numa bolsa e disse-me que não me aconselharia a ter coragem, pois já tinha mais do que ele alguma vez pensara possuir. Despediu-se então e disse que rezaria por mim com toda a sua alma. Beijei-o e deixei-o ir.
Senti envolver-me uma estranha felicidade, como se me tivessem coberto os ombros com um xale quente. A presença daquele homem fora um belo presente de Henrique e dera-me a conhecer que eu tinha feito o melhor possível para proteger a minha doce e inocente filha.
Afetuosamente,
Ana