Diário, 25 de Dezembro de 1529

i que falta de sorte minha! Escondida nos meus aposentos, ouço o ruído das festividades natalícias no grande salão de Greenwich celebrações grandiosas e públicas presididas pelo rei e pela rainha, enquanto que eu estou apenas acompanhada por minha mãe e irmã, Thomas Cranmer e alguns cortesãos que me são fiéis. George continua em França e meu pai – que julgo ignorar o significado da palavra lealdade – festeja esta noite ao lado do rei.
Reprovei veementemente Henrique por esta triste decisão, porém declarou-se impotente para alterar uma antiga tradição.
– Enquanto Catarina for rainha – respondeu – deve manter-se como minha consorte oficial, durante as festas de Natal e Páscoa. Noutras ocasiões, meu amor, sereis certamente vós a acompanhar-me. Já causamos escândalo por exibir em público o nosso amor, todavia nestes dias sagrados, os meus súditos não permitiriam a vossa presença a meu lado e revoltar-se-iam. Perdoai-me, Ana, peço-vos.
Não perdoei ao rei e, com as lágrimas a correrem-me pelas faces, ordenei-lhe que se afastasse da minha vista. Agora escuto a música que chega do salão lá de baixo, imagino as mesas festivas, iluminadas por um milhar de velas, os esplêndidos convidados de Henrique, as suas jóias, as suas vestes elegantes, a dançar e a rir, com os meus inimigos, encantados com a minha ausência.
Confessei estas tristezas a minha irmã viúva, que escutou as críticas que fiz a quem me detesta. Em primeiro lugar, a rainha que, com a sua perseverança e exasperante dignidade, contém as maquinações de Henrique e recusa-se a tratar-me mal. Maria afirma que Catarina não acredita que nos casemos e, que se se mantiver firme no seu lugar e nada disser de ofensivo ou insultuoso, chegará o dia em que recuperará a sua posição no coração do rei bem como a validade do seu casamento. Diz que a rainha não pode odiar-me, pois a sua fé católica e amor piedoso não lho permitem.
É bem diferente a atitude da princesa Maria. Tal como eu, minha irmã apercebe-se do veneno do olhar da jovem. Católica ou não, deseja ver-me morta. E embora Henrique despreze cada vez mais Catarina, adora a sua bonita filha Maria, agora com treze anos, inteligente e instruída, a sua Pérola do Mundo. Até que do meu ventre nasça um príncipe, esta frágil menina continua a ser a única herdeira legítima do Rei.
Inimigas de menor importância mas, mesmo assim incómodas, são as aias espanholas de Catarina. Já afirmei de viva voz que gostaria de as ver afogadas no fundo do mar. Maria perguntou-me se era verdade que eu dissera à aia da Rainha, Maria de Moreto, que preferia ser enforcada a reconhecer Catarina como minha ama. Confessei que sim, que era verdade e Maria soltou uma gargalhada que eu acompanhei. Foi bom sentir erguer-se a nuvem cinzenta do meu coração enquanto arremetíamos contra outros adversários, com gracejos e troças.
Depois perguntou-me qual era o meu mais fervoroso desejo. Levei algum tempo a responder. Que Henrique afastasse da corte a rainha Catarina e a princesa Maria, respondi, por fim.
– Deixa-me dizer-te como poderás obter tal favor do rei. – Inclinou-se mais. – Henrique é um homem lascivo e nem todos os beijos e carícias deste mundo o contentam.
– É como te digo, minha irmã. Nos seus sonhos sou muito melhor do que poderia ser na realidade.
– Dá-lhe alguma coisa, Ana, mas mantém a tua virgindade. Adota a técnica francesa para o satisfazer… com a boca. Juro que para ele será maravilhoso e que nem conseguirás contar os presentes e favores que te concederá depois de uma noite de tais carícias.
Senti ferver-me o sangue. Deveria aceitar o conselho de uma concubina usada e desprezada por Henrique?
– Queres ensinar-me estratégias de amor, quando estou a um passo da coroa de Inglaterra?
– Oh, faz como quiseres, minha irmã. Mas essa coroa está ainda firme sobre a cabeça de Catarina, que não desistirá dela assim com tanta facilidade.
– Henrique ama-me!
– Henrique é caprichoso.
Tive desejos de lhe esbofetear o belo rosto; contive-me, porém. Embora acredite piamente nas boas intenções do rei, sinto-me abandonada e afastada durante as festividades do Natal.
Meu Deus, rezo para que minha irmã se engane e que, no próximo Natal eu já seja rainha.

Afetuosamente,
Ana

Diário, 2 de Dezembro de 1529

este dia cinzento e ventoso, vi meu irmão partir para França. Despedimo-nos na praia de Dover, à sombra do castelo. O vento agitava-me o cabelo e a saia com tal força, que mais pareciam velas de lona, e apenas o braço forte de George no meu, conseguiu manter os meus pés em solo inglês. Estava frio, mas sentíamos o calor da nossa afeição. Apertou-me as mãos trémulas dentro do regalo de raposa, enquanto observávamos os pequenos botes cortar as ondas carregados com cestos, baús e barris em direção ao Princess Mary, que se encontrava ancorado ao largo da costa coberta de espuma.
Falamos de muitas coisas, juntando as cabeças. De como o amor de Henríque por mim tinha feito subir a posição e a fortuna da nossa família – o meu pai era agora conde de Wiltshire e de Ormond, George era lorde Rochford e eu, lady Ana Rochford. George fora ainda nomeado embaixador em França, daí a sua partida para esse país.
Recordáos o grande banquete que Henrique oferecera em Whitehall para celebrar essa ascensão da nossa família. Foi uma festa magnífica, para onde foram convidados importantes nobres. George disse que tinha visto a irmã do rei, a duquesa de Suffolk ficar mais verde que a seda do seu vestido, ao ver-me sentada à direita de Henrique, lugar reservado a rainhas coroadas. Du Belay, o embaixador francês, observou atentamente todos os pormenores da festa e George teve oportunidade de ver Eustace Chapuys, novo espião do imperador na corte (e conselheiro de Catarina) tomar notas num pequeno caderninho que trazia à cintura. Estou certa de que tudo o que aconteceu terá sido descrito numa carta a seu amo Carlos, para ser utilizado como arma em proveito de sua tia.
Houve muitas e variadas iguarias nesse banquete – ganso assado, lebre, cordeiro, pombo, codorniz e veado, bolos de manteiga recheados com frutos de Inverno, enormes quantidades de vinho doce, imensas tartes de pêra e maçã. Os músicos tocaram durante o festim. Depois vieram os bobos e novamente os músicos após as mesas terem sido retiradas. Dançamos, rimos e divertimo-nos até de manhã, quando a luz do sol começou a entrar pelas janelas do palácio. Foi uma noite tão feliz que houve quem murmurasse que a festa parecia um banquete de casamento.
Enquanto George e eu nos encontrávamos na praia, chegou um cavalheiro com a esposa e o seu séquito para fazerem a travessia do canal. O homem era bem parecido, a mulher formosa e seguiam-nos as criadas e várias filhas. Detiveram-se contra o vento, estremecendo só de pensar que teriam de realizar a travessia num barco de madeira, sobre o mar revolto.
– Oh, George – exclamei. – Acabo de ter uma visão do meu passado! Tinha nove anos. Era alta e muito magra, lembras-te?
– Lembro-me de ti assim. Alegre, de temperamento vivo. Olhos negros. A menina de nosso pai.
– Não estavas connosco aqui em Dover, no dia em que nossa irmã Maria e eu acompanhámos a princesa na sua viagem nupcial para França?
– Nessa altura, encontrava-me em Londres.
– Estava um dia parecido com o de hoje, cinzento, frio, com o mar bravo. Estávamos todos na praia, a olhar para os vários navios ancorados ao largo, aguardando o nosso embarque. Foi nesse dia que vi Henrique pela primeira vez. Pareceu-me belo como um deus, coroado rei havia pouco, ainda feliz com a sua esposa espanhola. Viera despedir-se da irmã, que enviara para casar em França com o velho rei Luís. Vi-o na praia, embora ele não tivesse reparado em mim que não passava de uma menina magricela. Nesses tempos, só tinha olhos para a rainha, a orgulhosa Catarina, grávida, de ventre inchado.
– Recordo-me de Henrique nesses tempos – disse George. – Parecia-me desmesuradamente grande, como se as suas vestes estivessem a ponto de rebentar de tanta vitalidade e avidez pelo mundo. A sua infância fora uma espécie de prisão; segundo filho, destinado à igreja, enclausurado nos austeros aposentos do próprio pai. Bem instruído, mas sem poder falar senão com os seus preceptores, caminhava sozinho pelos jardins vazios do palácio. Um jovem isolado. Depois o pai morreu, e a seguir Artur. Oh, Ana o jovem Henrique parecia uma borboleta acabada de sair de um casulo, completamente formado, para seguir uma vida alegre e emocionante. Henrique, o Grande… um codnome apropriado para um rei maravilhoso. George voltou-se e tomou-me as mãos.
– Há-de casar contigo. Sei que arranjará maneira. Tenciono regressar para presenciar a coroação de minha irmã.
Nesse momento, surgiu um marinheiro que veio avisar George de que deveria embarcar no pequeno bote, para chegar ao navio que, ao largo, balançava com o embate das ondas. Beijei-o, encomendei-o a Deus e deixei-o ir. Subiu a bordo e vi um golpe de vento arrebatar-lhe o gorro, que afinal conseguiu segurar com a mão. Voltou-se e sorriu de novo, parecendo de novo, com ar traquinas. O caloroso afeto do seu sorriso percorreu a praia e envolveu-me como uma capa de lã. Assim protegida, fiquei a ver partir o navio, que em breve desaparecia na linha do horizonte.

Afetuosamente,
Ana

Diário, 27 de Outubro de 1529

ue maravilhosa ocasião. O grande cardeal Wolsey caiu do seu pedestal e eu, ”a menina tola da corte” fui o instrumento da sua destruição. Verdadeiramente foi ele que cavou a própria sepultura, fazendo prevalecer a lei estrangeira – a do Papa – sobre a do Rei, desafiando assim a lei inglesa de Praemzinire. Deste modo, numa formosa manhã da passada semana, os duques de Norfolk e de Suffolk dirigiram-se ao palácio de York e exigiram ao chanceler o Grande Selo do Reino, destituindo-o do seu cargo e de todas as suas terras e bens mundanos. Com a cabeça baixa e o rabo entre as gordas pernas, saiu do palácio de York, dentro da sua barcaça pintada, enquanto era vaiado por pelo menos uma centena de cidadãos de Londres que gritavam dos seus barcos na esperança que fosse enviado como prisioneiro para a Torre. Porém o seu destino era outro: o desterro para uma casa fria e distante chamada Esher.
A minha participação consistiu em fazer ver a Henrique que Wolsey não era um amigo, mas sim quem, muito pelo contrário, tinha sido a causa de muitos problemas e desgraças para o Rei. Enquanto passeávamos nos jardins de Greenwich, com o vento a fazer rodopiar as folhas junto aos nossos pés, fiz um sermão a Henrique como se fosse um severo preceptor.
– O grande empréstimo contraído pelo cardeal para pagar a vossa guerra contra os franceses – disse eu – endividou todos os súbditos ingleses do reino em pelo menos cinco libras. Mas o pior foi que os seus erros diplomáticos nos privaram dos nossos aliados franceses e tornaram inútil toda a subserviência para com o rei Francisco. A Inglaterra perdeu a sua posição entre as potências europeias.
Henrique assentiu com um gesto grave, sabendo que aquilo que eu dizia era verdade, o que me deu coragem para prosseguir.
– Haveis erguido este sacerdote a uma altura tal que a sua riqueza ascende a um terço do vosso tesouro, e ele não tem um país para governar com o seu rendimento. Sabeis que chamam ao vosso cardeal o rei da Europa?
Henrique estremeceu como se lhe tivesse desferido um golpe, pois na sua indignação contra o velho Wolsey, misturavam-se também a lealdade e o amor, e sofria por ter de se separar dele. Mas não havia outro remédio. O seu destino estava decidido.
Quando Wolsey saiu do palácio de York, Henrique levou-me até lá, para passarmos revista aos seus bens confiscados. Era difícil imaginar as riquezas e a quantidade de coisas que vimos sobre enormes cavaletes e encostadas às paredes. Tapeçarias, dezenas de carpetes, almofadas, reposteiros, dezesseis camas lavradas de dossel, mesas, tronos, arcas, quadros enormes, uma baixela e taças de ouro para servir cem pessoas, cruzes de ouro e pedrarias, cálices e paramentos.
– São agora vossos, por direito, Henrique – disse eu, olhando para toda aquela riqueza acumulada. Vi o espanto nos olhos do rei, por possuir agora aquele tesouro.
– E vosso também, Ana – disse. Sorri disfarçadamente.
– Um presente de casamento de Wolsey, não é verdade?
O rei ficou num silêncio triste, pensando talvez nos bons conselhos do cardeal.
– Haveis feito bem, Henrique. Era hora de Wolsey partir.
– Sim. Agora preciso de um chanceler que não seja clérigo. Que pensais da minha escolha de Thomas More?
Demorei a resposta, pois sabia que o advogado e sábio autor da obra Utopia era amigo de Henrique. Era um homem respeitado pela sua justeza e muito apreciado na corte e entre o povo. Mas a sua nomeação fez-me pensar.
É um acérrimo católico e opõe-se ao divórcio – disse eu por fim. – É verdade. E insisto para que siga a sua consciência. Mas não deverá preocupar-se com o meu divórcio, apenas com assuntos e questões legais. More sempre se mostrou um servidor leal e obediente e apenas me dá opiniões quando insisto para que o faça.
Recordei o momento em que vira Thomas More pela primeira vez. Encontrava-me na sala de audiências do rei e, em meu redor, ouvia o arrastar dos vestidos de seda e o tilintar de pesadas correntes de ouro, contra os pregadores de pedras preciosas. O ar estava impregnado de perfume francês, proveniente das dobras e folhos de todos os gibões e corpetes de renda. Depois, por entre este jardim de pavões, surgira uma ave de plumagem diferente – um homem magro envergando vestes simples, negras e grosseiras. Tinha olhos doces e expressão amável.
Precedia-o a sua reputação. Amigo de Henrique desde a juventude, seu conselheiro de muitos anos, estimava Catarina e fora o anfitrião de Erasmo, quando este visitara a Inglaterra. Era muito amigo da família, casado há muitos anos com Alice More, mulher de língua afiada, e pai extremoso de uma filha natural e de outra que adoptara, sendo-lhe ambas muito dedicadas. Não consegui desviar os olhos do seu rosto, imaginando as doces palavras que aqueles lábios pronunciavam aos ouvidos das filhas. Educava-as com afeto e oferecia-lhes
uma boa orientação para esta vida difícil. Tudo o que nunca recebi da parte de meu pai. Lembrei-me do rosto dele – olhos de aço, boca apertada, dando-me rudes conselhos para a minha ascensão social. O meu valor era apenas medido por essa bitola… regressei ao presente e respondi à pergunta que Henrique formulara.
– A veneração de More por Vossa Majestade é admirável e certamente sincera, mas tem uma família a sustentar e precisa progredir na carreira.
– Questionais os seus motivos? – perguntou Henrique.
– Os motivos, não, mas a propensão para mudar de ideias. Não preconiza, na sua Utopia, a inflexibilidade para quem cometa adultério ou qualquer outro pecado que tenha a ver com o sexo? A primeira ofensa seria castigada com a escravatura. A segunda, nada menos que com a morte.
– É verdade. Mas no seu livro, também prevê que o divórcio seja possível. E julgo que, com todos os meus argumentos racionais e teológicos, conseguirei que mude de parecer e que se converta num precioso aliado para a nossa causa.
Rezo para que Henrique não se engane, pois afigura-se-me que teremos de enfrentar uma luta e uma batalha terríveis.

Afetuosamente,
Ana

Diário, 31 de Agosto de 1529

 rei e eu, achamo-nos, acompanhados por toda a corte em plena caçada de Verão, tendo-nos alojado em Waltham, Bamett, Tuttenhanger Holbom, Windsor e também Reading. Há sempre murmúrios por entre o seu séquito, quando, ao lado do rei, monto o meu alazão, magnificamente ajaezado e coberto por um caparazão de veludo negro, debruado a ouro. Porém os murmúrios sobem de tom, quando vou com ele na garupa do cavalo. As gentes que nos vêem passar estão plenamente convencidas que sou sua amante de alma e coração.
Hoje, cavalgamos por prados e colinas floridas, com o estrépito das trombetas e o latido dos cães, perseguindo majestosos veados, com o vento a bater-nos nas faces queimadas do sol. Henrique adora caçar. É maravilhoso vê-lo montar o seu alazão branco, ousado e viril, com os olhos brilhantes de felicidade. Todos os cuidados desaparecem, sob aqueles cascos trovejantes e esquece mesmo as preocupações acerca do seu divórcio com Catarina.
Mandei vir o meu cão Urian, que acaba de matar uma vaca, rasgando-lhe a garganta. Henrique pagou-a ao camponês mas, mesmo assim, murmurou-se que Urian era o nome de um demônio, o que me transforma, mais uma vez, numa bruxa, capaz de prender o rei com os seus feitiços. É verdade que ele está muito apaixonado e não oculta o que sente por mim. Não só me cumula de presentes – selas e arneses, vestidos, arco e flechas, luva de caça, e até roupa interior – como mostra publicamente o seu afeto: acaricia-me e beija-me à vista de todos.
Esta noite, enquanto ceávamos junto à enorme lareira, acesa nos seus aposentos privados, disse-lhe que não julgava prudentes aquelas demonstrações. Lá longe, em Roma, os seus homens continuam a tentar adiar o julgamento do divórcio. A rainha, embora afastada da vista de Henrique, persiste por sua vez em falar com os embaixadores espanhóis a seu favor. Até que tudo se resolva teremos de manter uma aparência de castidade.
Depois, quando terminámos, corados pela boa comida e pelo vinho, ele voltou-se de costas para atiçar o fogo e disse-me em voz baixa e, com alguma astúcia, penso eu, que há uns meses atrás Clemente lhe havia dito que se se mantivesse casado com Catarina, ele, o Papa, conferiria uma dispensa legal, para tornar legítimos os meus bastardos, filhos de Henrique. Não podia acreditar nos meus ouvidos! Ergui-me e preparei-me para abandonar a sua câmara, antes que o rei me visse chorar de raiva. Mas ele agarrou-me, já na soleira da porta.
– Ana, ficai. Nunca disse que concordava com tal coisa.
– Então, porque me haveis falado no assunto?
– Porque vos digo tudo!
– Acredito que haveis apreciado a oferta. Manter a rainha. Possuir-me. Legalizar os nossos bastardos. Continuar amigo do Papa. Sim, Henrique, agrada-vos bastante! – Tentei escapar-me, porém abraçou-me com força e as lágrimas rolaram-me pelas faces. – Meu Deus, como fui insensata! Fiquei à espera tanto tempo, entretanto poderia ter arranjado um casamento vantajoso e ter tido filhos! Posso despedir-me da minha juventude desperdiçada!
O rei inclinou a cabeça, com o queixo trémulo e os olhos húmidos.
– Escutai, Ana. Hei-de casar-me convosco com ou sem o consentimento do Papa.
Ali fiquei, como uma surda que, naquele momento, tivesse recuperado a capacidade de ouvir.
– Fa-lo-eis?
– Se necessário for.
Fiquei em silêncio, sabendo o que tudo aquilo significava para ele. A excomunhão da Igreja. Uma guerra santa contra toda a Inglaterra.
– Sabeis que li o vosso livro? – perguntou Henrique, em voz baixa. – A Obediência de um Cristão, de Tyndale.
– E o que haveis encontrado nele?
– As passagens que marcastes com a unha, para que eu reparasse… li-as várias vezes – olhou para o lume. – É um livro para ser lido por todos os reis. Diz que estes são responsáveis, não só pelos corpos, como pelas almas dos seus súbditos.
– Prossegui – pedi eu, já sem lágrimas.
– Sou o rei de Inglaterra e, como tal, em virtude de um antigo direito, sou imperador absoluto… e Papa, no meu próprio reino.
– Claro que o sois, Henrique! – exclamei. – E se estais de acordo com as ideias desse livro, tenho outro que podeis examinar.
– De que livro se trata? – perguntou, iluminando-se-lhe os olhos com um brilho igual ao que mostrara durante a caçada.
– Súplica pelos Mendigos de um tal Simon Fish.
– E que diz?
– Que a reforma das igrejas deve ser da responsabilidade do rei e não dos clérigos, pois estes são cruéis e corruptos e que o Purgatório nada mais é do que uma invenção grosseira, para extorquir dinheiro aos bons cristãos, pois estes acreditam erradamente que os sacrifícios monetários podem ajudar os entes queridos presos entre o Céu e o Inferno.
– É um título estranho para um livro.
– Fish escreve, com inteligência, acerca das hordas de mendigos ingleses, criados, segundo diz, porque o clero lhes rouba o dinheiro que poderiam ganhar com trabalho honesto.
Uma sombra passou pelo rosto de Henrique e pareceu nesse momento transformar-se num novo Atlas, com o peso do mundo sobre os ombros.
– Essas ideias são certas e verdadeiras, garanto-vos, porém não passam de palavras escritas no papel por autores que apenas têm de cuidar da sua vida. Não me posso arriscar agora a uma guerra com toda a Europa católica. Não disponho de um exército suficientemente numeroso, nem de dinheiro para pagar aos soldados. Toda a Inglaterra sofreria se…
– Bem sei.
– E também, ainda não perdemos em Roma!
– Também o sei.
– Meu Deus, Ana, amo-vos! – exclamou, estreitando-me contra o peito. – Ficai e lutai comigo, pois conseguiremos a vitória. Sei que assim será!
– Ficarei, Henrique, ficarei – nesse momento, beijei-o e abracei-o. A nossa batalha será longa e brutal, contudo, esta noite, soube que continuava determinado e, mais importante ainda, soube que ele vira o caminho que leva à nossa meta, iluminado por uma luz diferente – uma luz cuja fonte estava longe de Roma e se chamava Lutero.

Afetuosamente,
Ana

Diário, 25 de Julho de 1529

 traição cometida pelo Papa é tão difícil de imaginar, que me custa falar dela. Mas devo fazê-lo, pois o meu destino e o de Henrique estão entrelaçados. O julgamento foi suspenso sem qualquer veredicto, nem favorável, nem contrário ao divórcio do rei. Terminou simplesmente, para que o caso fosse transladado para Roma, o que é pura e simplesmente uma desgraça. Catarina ganhou esta batalha, pois se o caso for julgado nessa cidade, certamente será decidido a seu favor.
É muito claro como as coisas chegaram a este ponto e a rainha, embora vitoriosa, não é a causa. Tal como eu, é um mero peão dos homens e das suas guerras. O que aconteceu é que, sem que disso tivéssemos conhecimento, os franceses foram derrotados pelas tropas imperiais em Landriano, no campo italiano e uma peste levou os sobreviventes. Assim, enquanto Henrique suportava um caloroso Verão aqui em Blackfriars, aguardando pacientemente a resolução da sua causa, o papa Clemente foi a Barcelona e assinou um tratado, com o recém-coroado imperador.
Depois, o nosso aliado Francisco foi a Cambrai fazer a paz. Tudo isso ignorávamos, apenas tínhamos conhecimento da suspensão do julgamento e a informação de que quando reabrisse em Roma teria uma conclusão justa. Só mais tarde, tudo se tornou claro para os nossos espíritos. O Papa, agora em paz com o imperador Carlos – sobrinho da rainha Catarina – nunca dará o seu consentimento a este divórcio.
No dia 23 de Junho, último dia do julgamento e, supostamente, o da leitura da sentença, dirigi-me a Blackfriars, pois enlouqueceria se ficasse à espera em Durham HalI, para saber o que seria de mim, e escondi-me numa galeria. Os cardeais estavam de pé e vi Wolsey, mudo e trêmulo, enquanto o cardeal Campeggio, com ar afetado, fazia o seu virtuoso discurso.
Declarou temer o desagrado de Deus e a condenação da sua alma, se concedesse favores a um príncipe ou homem de estado e que, por enquanto, não poderia pronunciar qualquer sentença. Henrique, preparado para boas notícias, sentiu-se ofendido e impotente como uma criança pequena. Abandonou a sala, espumando de cólera, fazendo tremer o chão que pisava.
O duque de Suffolk falou então em nome do rei, dando largas à sua fúria:
– Pela santa missa, vejo agora que é verdade o que diziam os antigos. Nunca ouve legado ou cardeal que favorecesse a Inglaterra. Sozinha na galeria, tenho de confessar que chorei por todo o tempo perdido, por todas as esperanças destroçadas.
E onde estava a grande influência do cardeal Wolsey em toda esta questão? Não sei. Velho impotente, que nos fez crer em vão, que aquele tribunal nos seria favorável se reunisse em Inglaterra. Maldito Wolsey, filho de um carniceiro de lpswich, elevado à mais alta glória. A sua estrela perdeu o brilho. Henrique dá-me agora ouvidos, quando lhe falo mal dele. E o maldito cardeal há de sofrer com o meu desagrado. Juro que o farei cair, para nunca mais se levantar.

Afetuosamente,
Ana

Diário, 21 de Junho de 1529

 batalha está a ser travada pelas duas partes. E embora ambas se encontrem feridas, nenhuma foi ainda derrotada. Contemplei o rio das janelas de Durham e vi a barcaça de Catarina seguir para o tribunal de Blackfriars levada pela maré da manhã.
Nas margens do rio juntava-se uma multidão, constituída principalmente por mulheres, que aclamavam a rainha no seu percurso, com gritos de afeto e lealdade. Sei que eram apenas alguns dos muitos apoiantes da rainha que me detestam. Falaram-me das multidões que se juntam à entrada de Blackfriars Hall, à espera dela, que a chamam pelo nome, que lhe dão força para levar a cabo a sua maldita campanha contra o rei. O dia estava diabolicamente quente e não corria qualquer brisa ao longo do rio. Cá dentro, o ambiente tinha o cheiro do medo. As horas passavam lentamente e nem uma palavra de meu pai ou de meu tio Norfolk, acerca do que se estava a passar. Porém, quando a longa tarde se dissolveu num crepúsculo cor de mel, começou o cortejo flutuante de lanchas, barcas e barcaças, transportando rio acima, os participantes do tribunal de volta para Londres. O magnífico barco de Henrique separou-se dos outros e atracou no ancoradouro de Durham.
Sorrindo, com ar de desafio, à vista de todos, atravessou o relvado e eu, contagiada por aquela ousadia, fui recebê-lo no meu rico vestido cor de safira, com o cabelo solto pelas costas abaixo. Mas assim que se encontrou dentro de casa, a altivez do rei desvaneceu-se. O sorriso pareceu murchar e transformar-se numa expressão de raiva e de cansaço. Obriguei aquele guerreiro exausto a sentar-se e mostrei-me pródiga nos meus carinhos – limpei-lhe o suor da testa, perfumei-lhe as roupas, trouxe-lhe vinho gelado e beijei-o docemente.
Então sorriu, parecendo recordar-se das razões que nos tinham levado a travar tão dura batalha e começou a falar do seu dia no tribunal. Começara com uma sentida declaração, em que expusera os seus terríveis remorsos pelos atos inocentemente adúlteros, cometidos por ele com Catarina, esposa legítima de seu irmão.
– Falei bem e durante muito tempo – disse. – Apresentei os meus argumentos para conseguir alguma vantagem, contudo, quando terminei, Catarina ergueu-se e, com a sua altivez de princesa espanhola, atravessou a sala silenciando todos, e ajoelhou a meus pés. Então, Ana, suplicou-me, por todo o amor que houvera entre nós e por amor a Deus, em nome de quem afirmava falar, que a tratasse conforme era de justiça e direito. Pediu piedade e compaixão, por ser estrangeira e acrescentou que não contava com assistência jurídica suficiente. É verdade. Os dois advogados imperiais, cuja chegada da Flandres aguardava para defenderem o seu caso, não apareceram… dizem que o sobrinho Carlos não o permitiu, temendo pela segurança dos dois homens. Mas deixai que vos diga que Catarina envergonharia qualquer advogado. Afirmou ter sido sempre uma mulher humilde e obediente, mostrando afeto pelos meus amigos e ódio pelos meus inimigos. Falou dos filhos natimortos e de que o seu falecimento não fora culpa sua, mas sim a vontade de Deus.
Nesse momento, Henrique deteve-se e lançou a cabeça para trás, como se se recordasse de um acontecimento doloroso.
– Que foi, meu amor? – perguntei. – Que mais disse ela?
– Que Deus era sua testemunha… quantas vezes invocou o nome de Deus… Que, quando a tomei pela primeira vez no leito, era uma donzela e nunca nenhum homem lhe tinha alguma vez tocado. Chegara virgem ao leito de Artur e virgem de lá saíra.
– É o oposto àquilo em que baseais toda a vossa argumentação, não é verdade? – O rei acenou gravemente com a cabeça. – Mas meu pai – prossegui – recorda-se de ter falado com Artur na manhã seguinte ao casamento e de este lhe ter dito claramente: “Trazei-me um copo de cerveja, pois esta noite estive no meio de Espanha!” Outros afirmam que é verdade, que ela não era virgem quando chegou ao vosso leito, de modo que o vosso caso se justifica, por mais que Catarina invoque o nome de Deus.
Henrique escutou os meus argumentos, mas mesmo assim parecia preocupado.
– Não haveis visto a multidão quando abandonou a sala. Estavam todos com ela. Os bispos, os clérigos, os advogados e os embaixadores ficaram sentados em silêncio e cheios de assombro, ouvindo as aclamações através das portas abertas. “Viva Catarina!”, gritava o povo. ”Que bem se defende!” “Não tem nada a temer!” Oh, Ana, que fortaleza a dela!
– E vossa também! – exclamei, tomando nas minhas as mãos de Henrique. Apercebi-me do seu pescoço tenso, do rosto corado, da expressão de infelicidade.
– Catarina falou verdade ao dizer que é uma estrangeira. Este país é vosso e ela só foi rainha porque vós o haveis querido!
– É verdade, é verdade – concordou o rei, mais animado com as minhas palavras.
– O vosso sangue Tudor lutou para obter a coroa e conseguiu-a. Sois o oitavo Henrique a governar esta terra, e sois de longe o maior. Não há princesa espanhola que possa matar os vossos desígnios.
– Nem um maldito cardeal!
Erguemos os olhos e vimos que meu pai entrara, vindo do rio.
– Com vossa permissão, Majestade, devo dizer-vos que Wolsey não é para vós um servidor leal. A questão escapa-se-nos das mãos, creio que por sua culpa.
– Fazeis um juízo severo, Thomas.
– Nem por isso, Senhor. Sois demasiado benévolo. O duque de Norfolk enviado por vós em missão diplomática a França, cita o rei Francisco, quando diz que Wolsey gozava de “um privilegiado contato com Roma, tal como o cardeal Campeggio”. Pergunto-vos: onde está a lealdade? Até mesmo Thomas More, esse erudito, qualifica as suas ações astutas e diz que tem agido perfidamente convosco. O povo também o odeia, Majestade, pois tem lançado impostos exagerados para financiar as guerras no estrangeiro. Digo-vos que o deveis vigiar de perto e não só a ele como também ao cardeal Campeggio que não passa de um lacaio papal, vestido de vermelho.
– Obrigado pelos vossos conselhos, lorde Ormond e também pelos vossos, minha querida. Mas embora possais estar certos acerca dos cardeais, acredito do fundo do meu coração que nunca se atreverão a manobrar contra mim. Em Roma, o Papa detestaria perder o seu aliado inglês. Meus amigos, tivemos um dia difícil, mas acabaremos por vencer.
Assim, tendo recuperado o bom humor, o rei jantou connosco em Durham. A refeição foi agradável e divertida. Toquei alaúde, cantamos e, depois de meu pai se ter retirado, abraçamo-nos e beijamo-nos. Henrique disse que seria eu que o faria mover céus e terra. Ama-me verdadeiramente e eu espero do fundo do meu coração poder corresponder-lhe do mesmo modo. Sei que um dia o meu amor igualará o dele, mas por agora tenho ainda de fingir.

Afetuosamente,
Ana