O dia em que Ana Bolena ‘abortou seu salvador’

Ana Bolena em 1536, por um artista desconhecido no século 16. © Private CollectionNo final de Janeiro ou no início de Fevereiro de 1536, Ana Bolena, a segunda rainha de Henrique VIII, sofreu um aborto espontâneo que se acredita ter sido uma criança do sexo masculino, em Greewnch Palace. Isto foi envolvo em mistério e controvérsia, com uma série de mitos que cercam a trágica perda de um herdeiro masculino que, quase certamente, teria garantido a segurança pessoa de Ana como rainha e confirmaria aos olhos de seu marido que seu segundo casamento foi válido e, seu primeiro, ilegal. Alguns estudiosos tem visto a gravidez de Ana como a razão direta de sua queda, enquanto outros sugerem que isso enfraqueceu consideravelmente a sua posição, mas dizem que ela não estava em perigo. Como se sabe, uma rainha consorte só estaria segura depois de dar à luz a um herdeiro do sexo masculino.

Os detalhes do aborto aparecem na carta que Eustace Chapuys enviou para Carlos V em 10 de fevereiro:

‘No dia do enterro [de Catarina de Aragão] a Concubina [Ana Bolena] teve um aborto do que parecia ser uma criança do sexo masculino que não tinha três meses e meio, na qual o rei mostrou grande desagrado. A referida concubina pretendia colocar a culpa sobre o Duque de Norfolk, a quem ela detesta, dizendo que ele a assustara, trazendo a notícia da queda do Rei seis dias antes. Mas é sabido que esta não é a causa, porque foi dito a ela de uma forma de que ela não deveria se alarmar ou dar muita importância. Alguns acham que foi devido a sua própria incapacidade de ter filhos, outros a um temor de que o rei tratá-la-ia como a falecida Rainha, especialmente considerando o tratamento que ele tem mostrado a uma dama da Corte, chamada Senhorita Semel [Jane Seymour], para quem, como muitos dizem, ele ultimamente tem dado muitos presentes.’

A discussão entre Ana Bolena e o Duque de Norfolk havia acontecido no dia 24 de Janeiro quando, após cair do cavalo em uma justa, Henrique ficou inconsciente por várias horas, tempo no qual os cortesões travavam batalhas silenciosas sobre o que seria feito caso Henrique VIII morresse. Quem eles apoiariam? Elizabeth, de três anos, ou Maria, de vinte anos? O choque da notícia, segundo Ana, fez com que ela abortasse a criança que estava esperando.

Uma nota feita por Charles Wriothesley também clama que tinha sido uma ‘criança do sexo masculino’, corroborando com o relatório de Chapuys de que Ana tinha tido um aborto de ‘uma criança do sexo masculino de que não tinha completado três meses e meio’. A única diferença neste relatório é que Wriothesley dá a data de 30 de Janeiro, afirmando que a própria Ana tinha dito que estava ‘esperando um filho há cerca de 15 semanas’ quando ela o perdeu.

Wriothesley certamente estava em uma posição para conseguir essa informação, mas deve-se questionar se o sexo do bebê poderia ter sido verificado com apenas 14-15 semanas? Mesmo com todas as tecnologias modernas à nossa disposição, o sexo de um feto normalmente só pode ser determinado a partir de 17-18 semanas. Talvez Ana tivesse calculado mal? Mesmo assim, Ives aponta que nessas fases iniciais da gestação mesmo as parteiras mais experientes poderiam ter reconhecido o sexo da criança. Desse modo, o que nos resta é um diagnóstico amador feito por atendentes normais da Rainha.

No reinado de Elizabeth, Nicholas Sanders divulgou que Ana tinha abortado ‘uma massa disforme de carne’. É claro que este é o mesmo homem que alegou que Henrique VIII era o pai de Ana Bolena. Retrato póstumo de Ana Bolena grávida.Esta alegação foi espetacularmente desenvolvida no romance extremamente impreciso de Philippa Gregory, ‘A irmã de Ana Bolena’:

Nas mãos manchadas de sangue da parteira estava um bebê horrivelmente deformado, com a espinha exposta, sem a pele, e a cabeça imensa, o dobro do corpinho espigado.

(GREGORY, 2009, pag. 558).

No livro The Rise and Fall of Anne Boleyn, Retha Warnicke argumenta que ‘o feto nasceu deformado, uma tragédia que constituiu a única razão para  a movimentação do Rei no processo que levou à execução de Ana’. Ives afirma que não há um pingo de evidência para apoiar a ‘suposta deformidade’. De acordo com Charles, em sua biografia escrita em 1536, Ana tinha gestado ‘um belo filho’ (un beaus fils) nascido ‘antes do prazo’.

Curiosamente, há uma crença do século XVI que as bruxas estavam conectas com nascimentos monstruosos. Assim a história do feto deformado levou alguns historiadores a especularem que havia uma conexão entre a queda de Ana e as acusações de feitiçaria. Assim, a história do feto deformado levou alguns historiadores a especularem que havia uma conexão entre sua queda e as acusações do próprio Henrique, que havia afirmado que fora enfeitiçado por Ana Bolena, ‘seduzido e forçado a fazer este segundo casamento por meio de sortilégios e feitiços’.

Warnicke afirma que as acusações de adultério e incesto foram feitas para tentar esconder a notícia da criança deformada, o que aparentemente era mais depreciativo para a honra do rei do que o fato de sua esposa ter cometido adultério com cinco homens, dentre eles seu próprio irmão. É improvável, entretanto, que os funcionários e o governo pudessem esconder com sucesso a notícia de um acontecimento tão monstruoso quanto o nascimento de uma criança deformada que nasceu da mulher mais poderosa do país.

O notório Chronicle of Henry VIII, que afirmava que a rainha era culpada de adultério e contém várias imprecisões, não se referiu a nenhuma gravidez. Durante o reinado de Maria I, quando Ana foi referida publicamente como sendo uma adúltera, não houve menção a um feto deformado.

Em 25 de Fevereiro de 1536, Chapuys escreveu mais informações sobre o aborto de Ana:

‘Eu aprendi com várias pessoas desta Corte que por mais de três meses o Rei não falou mais de dez vezes com a Concubina, e que quando ela abortou ele quase não disse nada a ele, exceto de que ele viu claramente que Deus não queria lhe dar uma criança do sexo masculino, e ao deixá-la, ele lhe disse como se por despeito, que ele iria falar com ela depois que ela se recuperasse. A referida Concubina atribuiu a infelicidade por duas causas: primeira, a queda do rei, e outra, que o amor que ela lhe deu era muito maior do que a da antiga Rainha, de modo que o coração dela se partiu quando ela viu que ele amava outras. Observo que o Rei está muito triste, e que tem mostrado sentimentos destes pelo fato de que durante esses festivais ele está aqui e deixou a outra em Greenwich, quando ele anteriormente não podia deixá-la por uma hora’.

Mais uma parte sinistra da mesma história diz que o rei escamou: ‘Estou vendo que Deus não vai me dar filhos homens’. Na biografia de Ana Bolena escrita por George Wyatt, o rei vai falar com Ana ‘lamentando e chorando’ a perda do filho, para ver Ana não se conter e fazer uma referência ao recente romance do rei com Jane Seymour. As últimas palavras do rei foram sem dúvida ameaçadoras: ‘ele não teria mais filhos homens com ela’.

Á primeira vista parece que o aborto foi o começo do fim para Ana e sua relação com Henrique, mas existem algumas inexatidões e observações contraditórias feitas por Chapuys quando comparamos com a sua carta sobre o comportamento do Rei após a morte de Catarina de Aragão. Ives também aponta que, apesar de Chapuys tenha feito questão de enfatizar que Henrique e Ana estavam separados, isso provavelmente não foi tão ameaçador quanto soa. Nesta época, os projetos para dissolver os mosteiros estava em andamento e Henrique precisava ir para Westminster. Como Ana ainda estava se recuperando, ela não podia lhe acompanhar. De acordo com David Starkey, ‘Ana mostrou grande presença de ânimo e imediatamente falou de sua próxima gravidez.’

Mesmo depois do aborto de Ana, Henrique continuou se esforçando para convencer a Europa a aceitar Ana, mas a perda de outra criança deve ter adicionado muito estresse em seu relacionamento e, mais importante, velhos medos despertaram na mente de Henrique: seu casamento com Ana terminaria como seu primeiro casamento? Deus também condenou a união, não os abençoando com um filho vivo?

‘A rainha abortou seu salvador’, escreveu naquela semana um diplomata. “Henry VIII’s First Interview with Anne Boleyn”, por Daniel Maclise em 1835.O aborto certamente deixou Ana Bolena em uma posição vulnerável, mas de acordo com Eric Ives:

‘O aborto de 29 de Janeiro não foi a última chance Ana e nem foi o momento em que Jane Seymour substituiu Ana nas prioridades de Henrique’.

O aborto certamente abalou a fé de Henrique em Ana, mas não foi o momento em que ele decidiu colocá-la de lado. Havia muitos fatores políticos, religiosos e familiares que provocaram a queda de Ana. Não há nenhuma evidência de que Henrique passou a querer se livrar de sua esposa depois que ela abortou.

Bibliografia:
GREGORY, Philippa. A irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges – 3º Edição – Rio de Janeiro: Record, 2009.
GRUENINGER, Natalie. ‘Anne Boleyn’s Final Miscarriage‘. Acesso em 29 de setembro de 2013.
BYRNE, Conor. “A Shapeless Mass of Flesh”?: Anne Boleyn’s Miscarriage of 1536. Acesso em 29 de setembro de 2013.
Anne’s Final Pregnancy‘. Acesso em 29 de setembro de 2013.
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

5 comentários sobre “O dia em que Ana Bolena ‘abortou seu salvador’

  1. CAtarina de Aragão teve pelo menos seis abortos, antes de Henrique se livrar dela. Como estaria o ânimo de dele, após uma filha e um aborto de Bolena, é uma grande dúvida. Outros fatores influenciaram para a queda de Ana, mas esse aborto foi, sem dúvida, a pedra de tropeço que a levou ao cadafalso.

  2. Acredito eu que tenha sido o começo do fim. Com a criança do sexo masculino, Ana seria intocável para qualquer inimigo da corte. Apesar de Henrique não ter demonstrado sinais de desejo para livrar-se dela, com certeza, as ficções rivais da corte encontraram neste infortúnio o momento ideal para despertar os tais sinais no Rei.

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